sexta-feira, 17 de abril de 2020

UM MUSEU PARA AVINTES

MA1
Maria Manuela Aguiar
UM MUSEU DE AVINTES
Edifício, na Rua do Paço, onde vai ser instalado o Museu d Pão.

1 - Um Museu na zona ribeirinha?

Todas as terras, todas as comunidades em sentido orgânico, deviam, idealmente, ter a sua monografia, a sua imprensa, o museu do seu acervo, da história coletiva e das memórias de que se faz uma identidade carreada de geração em geração. No mundo novo a que alguns chamam "aldeia global", esta será, porventura, uma das formas de participarmos em pleno num movimento irresistível de confraternização planetária, sem nos perdermos nele. 
A Avintes não tem faltado estudo e reconhecimento de um percurso mais do que milenar e excelentes publicações, entre as quais se conta, número a número, esta Revista, como uma ponte de passagem entre o passado e o presente, a tornar-se devir. Notáveis contributos que podem servir, agora, um inovador projeto da Junta de Freguesia, um projeto museológico focado numa das atividades em que ganhou renome nacional: a broa de Avintes, que não tem igual, nem no país, nem no mundo.
Sobre ele, a Revista "Caminho Novo" me desafiou a fazer um pequeno depoimento, talvez pelo facto de poder vir a estar, de certo modo, ligada à criação do condicionalismo para um lançamento rápido da iniciativa. Na verdade, uma  casa rural da minha família paterna, com localização privilegiada, na marginal do Douro, junto ao Areínho, é uma das sedes possíveis para a localização física do museu.
E é sabido que  estou recetiva a doa- la ao Município, para esse fim, para que a ideia possa, a breve prazo, concretizar-se ali mesmo, no lugar do Paço, que é tão bonito, e naquele conjunto assimétrico, mas harmonioso, de edificações de pedra antiga, com o lagar, o forno caseiro, a eira de granito e o espigueiro, em que hibernam reminiscências de séculos de agricultura ribeirinha - de quando o milho bordejava
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Espigueiro e Casa da Eira
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Lagar

as águas do rio, e aí deixava, ao correr dos ventos, um reflexo ondulante. Ainda era assim, nos anos da minha juventude, a marginal de Avintes, um dos trechos mais idílicos do Douro num curso de correntes fortes e vagarosas, como se não tivesse pressa de chegar ao Porto, já tão perto. Paisagem não muito diferente da que avistava, no quotidiano, meu bisavô João Dias Moreira, que não conheci, mas imagino a calcorrear aqueles caminhos, na direção daquela casa, na companhia do meio - irmão, Padre Manuel Pinto da Silva, ambos vultos imponentes, com quase dois metros de altura, falando da sorte das colheitas, ou, talvez, da sorte do país, que atravessava as crises e os afrontamentos de um período revolucionário.

Descrição: C:\Users\Zé Vaz\Desktop\CN34\Fotos Artigo Museu do Pão\Museu do Pão-Casas do Paço- Manuela Aguiar\MA6-Padre Patrão-foi publicad noo Almanaque  como Jose Joaquim da Silva Valente.tif
Padre Manuel Pinto da Silva (Padre Patrão)

Ao Padre Manuel, monárquico, convicto defensor de valores cristãos tradicionais, se deve a fundação e direção do primeiro jornal da terra , o "Aurora de Avintes",

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Cabeçalho de 1.º Periódico de Avintes A Aurora de Avintes, cujo Director e Editor era o Padre Manuel Pinto da Silva (Padre Patrão).


 e a João, menos movido pelo proselitismo religioso, a reconstrução, em fins do século XIX, da casa que herdara dos pais, triplicando a área da sua matriz (muito mais antiga)) e acrescentando-lhe, do outro lado do terreiro, três pisos de aidos, lojas e arrumos, a aproveitar o declive íngreme da colina, com a eira e o espigueiro no patamar superior.
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Conjunto interior de edifícios do futuro Meseu do Pão

Tudo cercado de muros, dentro dos quais o granito austero dominava, nas escadas, nas paredes, e até no chão, emergindo aqui e ali, irregularmente, entre terra batida, sem fazer contraste com a pintura da fachada, de um  beije neutro.
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Descrição: C:\Users\Zé Vaz\Desktop\CN34\Fotos Artigo Museu do Pão\Museu do Pão-Casas do Paço- Manuela Aguiar\MA12 Museu do pão (4).JPG 
Outras instalações do futuro Museu do Pão

Todavia, menos severo terá sido o ambiente humano ali vivido, pois João, ele mesmo pessoa serena e de bom feitio, era casado com Quitéria Francisca Pinto, mulher que sabia combinar perfeitamente os ritmos de labor intenso e de diversão, incomparável contadora de lendas e histórias e poetisa repentista, imbatível na arte de "cantar ao desafio". O pai andara pelo Brasil e de lá trouxera uma maneira alegre e otimista de estar em família e em sociedade, além de capital para investimentos e para construir uma vivenda, situada perto da que viria a ser da filha Francisca (Reis pelo casamento), na rua 5 de outubro, atualmente a sede dos "Plebeus Avintenses". A irmã, Esperança, casara com um jovem Adolfo Marques, dos Marques que a Avintes deram alguns dos seus famosos escultores da madeira.
Do marido, João, sabe-se que os antepassados também eram de Avintes, mas a alcunha "patrão" parece indiciar que seriam gente ligada, não à agricultura mas à pesca ou a estaleiros, que ali terão florescido. Certo é que, em boa hora, ele se dedicou à lavoura, com um sucesso que o tornou figura lendária para a descendência, constando que terá adquirido, ao longo da vida, 99 propriedades, entre pequenas courelas e matas, pinheirais e quintas. Contudo, mais importante do que o seu rasgo empresarial é a aura de lisura de trato e generosidade, em particular para com quem estava ao seu serviço, que terá originado este dito curioso: "Mais vale ser cão na casa do João Patrão do que criado nas outras quintas".
O espaço que poderá, em dias não muito distantes, albergar o museu de que se fala, fez, pois, genuinamente, parte do ciclo do milho e da broa, "ex-libris" de Avintes
2 - Incursões no campo da experimentação museológica... 
Penso, naturalmente, num museu de "nova geração", com work-shops, suportes digitais, ações formativas e pedagógicas - não um daqueles que, quando era jovem,  esgotavam,  para mim, praticamente, o seu conceito, sinónimo de coleções de arte, "templos das musas", no sentido etimológico da expressão, que eu gostava de visitar, embora conservassem quadros e estatuária, sempre ali, imutáveis e estáticos, dados à nossa contemplação. Hoje é coisas comum imprimir-lhes dinâmicas em várias direções, até ao cerne da vivência das comunidades e da interpretação das suas particularidades..
Não esperava ver-me, anos mais tarde, envolvida em "aventuras museológicas", como aconteceu em função do meu trabalho no campo das migrações. Cedo me apercebi que a longa aventura da Diáspora portuguesa, feita de uma infinidade de aventuras individuais, que ainda prosseguem, imparavelmente, merecia honras de um museu nacional, capaz de testemunhar a realidade económica, política, sócio - cultural, intercultural, e as suas formas externas e, também, internas, de presença e representação, ao longo de séculos. Estávamos no princípio dos anos oitenta e a ideia parecia, então, pouco menos do que peregrina e irrealista. O interesse académico na área da emigração andava esmorecido, se se comparar com o que despertava no auge do êxodo para o Brasil, e com o que desperta atualmente. Na demanda de modelos inspiradores, pedi, durante uma viagem oficial a Estocolmo, para visitar o museu sueco da emigração, em Vaxjo, no sul do país, e de lá regressei com ensinamentos preciosos e impressionada, sobretudo, com o rigor na procura e obtenção sistemática de dados individuais, imagens, objetos, cartas, registos paroquiais e milhares e milhares de entrevistas, cada uma com duração de horas. Ali, ao dispor de visitantes, tanto como de futuras investigações multidisciplinares, estava o pulsar de várias gerações de migrantes, não apenas de alguns notáveis, mas de pessoas comuns.  No lugar central estava o Emigrante, enquanto protagonista do movimento coletivo - uma outra forma de escrever história.
Na impossibilidade de importar, sem mais, o modelo original, para um país sem preexistência de semelhantes preocupações e  pesquisas, havia que as promover e aprofundar e, com esse propósito, se instituiu o "Fundo Documental e Iconográfico das Comunidades Portuguesas".  O "Fundo" teve, um rápido trajeto ascencional, porém, assaz abreviado, pois quando se consolidava, já com muitas dezenas de obras publicadas, terminava o meu mandato, e no executivo seguinte, como é de regra entre nós, até dentro do mesmo quadrante partidário, o programa nascente foi imediatamente abandonado....

Atravessamos agora conjuntura bastante propícia ao lançamento das mais diversas configurações  museológicas, mas no terreno quase inexplorado da emigração, só vingaram as  que se devem a ação municipal,  caso do Museu da Emigração Açoriana, na Ribeira Grande, e do Museu das Migrações e das Comunidades, em Fafe, concelho por excelência, de "brasileiros" de "torna-viagem" (que, aliás, também em Avintes e em toda a região do Porto, deixaram a sua marca e não só em bonitas mansões familiares).

A nível de sucessivos governos, o tema tem sido, espaçadamente, retomado, ainda que apenas no discurso, apesar de alguns deles terem conseguido levar a bom termo exposições temáticas de tal qualidade e dimensão que, como afirmou, recentemente, a Prof,ª Miriam Halpern Pereira, teriam podido constituir o embrião ou o primeiro polo de uma experiência museológica...  Esse queria ser e podia já sido  o destino da exposição "Os emigrantes e o mar" , que, há mais de 30 anos, foi o "canto de cisne" do  referido Fundo Documental e Iconográfico -  uma exposição que, em espaço próprio,  se converteria, facilmente, de temporária em permanente.

O paradigma sueco levou-me, igualmente, como dirigente de ONG' s, a incentivar, no âmbito do movimento associativo das comunidades do estrangeiro ou nas regiões de origem dos emigrantes, a recolha de depoimentos individuais, que, em algumas (Rio de Janeiro, Buenos Aires, Nova York,  Chaves) se traduziu em relevantes estudos e publicações. O que falta é a sua generalização, e um esforço de coordenação científica. Daí a esperança veio trazer um ambicioso projeto da Universidade Nova de Lisboa, patrocinado pela FCT,  e dirigido pela  historiadora Maria Fernanda Rollo, (antiga Secretária de Estado da Investigação Científica), que tem por  título "Memória para todos"  e a todos lança um apelo aliciante: "Faça história, partilhando a sua".

Para quem queira participar, saliento a abertura da projeto a quaisquer domínios, períodos, quadrantes geográficos, acontecimentos, festas e rituais, artesanato... A broa de Avintes, o círculo da sua produção, teria, no vasto conjunto já estudado, o mais perfeito cabimento...e falámos de mais de cem comunidades, de centenas de entrevistas, e de milhares de objetos pessoais recolhidos, de memórias das guerras mundiais, da primeira República, da guerra colonial, da ópera, de corporações (como a polícia), de aldeias e vilas. As possibilidades são infinitas, assim haja entusiasmo popular, solicitações, que, confio, hão-de chegar também das comunidades do estrangeiro.

 3 -   Diversidade cultural  e museus municipais
No nosso país, assiste-se, neste começo do século XXI, a uma expansão de pequenos ou grandes museus municipais - e refiro-me aos que são, de facto, de vocação especificamente local, não os que resultam de uma apressada forma de descentralização, a remeter para a órbita autárquica alguns dos sedeados fora da capital. Há, evidentemente, importantíssimos museus nacionais, fora de Lisboa, (o da emigração poderá, em breve, ser um deles...) e como tal, terão de ser reconhecidos. Municipais devem, pois, considerar-se os que valorizam e divulgam as singularidades do seu espaço próprio. no que respeita a instituições, artes e artífices tradicionais, comunidades de trabalho e de empreendimento... São, hoje, muitos, por exemplo: o Centro Interpretativo do Património da Afurada, voltado para a pesca e para o rio Douro, o Museu de Espinho, dedicado à arte xávega e à indústria conserveira, o Museu do Ouro em Travassos, Póvoa do Lanhoso, o Museu da Chapelaria e o Museu do Calçado, em São João da Madeira, o Museu Mineiro de São Pedro da Cova, o Museu do Móvel de Paços de Ferreira, o Museu Marítimo de Ílhavo, (com os núcleos da faina da Ria e da pesca do bacalhau nos mares do Norte, um navio- museu e um recentemente inaugurado aquário de bacalhaus).
            Encontram, todos, a razão de ser no caráter singular de um património material e imaterial, e são, nesta perspetiva, uma celebração da diversidade cultural, do direito à sua afirmação e da responsabilidade de a cultivar e aprofundar. O que é extraordinário, único tem de ser preservado e partilhado, constituindo responsabilidade não só dos poderes públicos, como da sociedade civil e dos cidadãos.
Em Avintes, a absoluta raridade dá um claro favoritismo ao fenómeno cultural e gastronómico, que é a sua broa, afamada no país inteiro e a merecer, sem dúvida, o esforço da internacionalização, que será enormemente facilitada pela existência de uma unidade museológica ou "centro interpretativo".
Quando, como e onde isso acontecerá, é, de momento, pergunta sem resposta. Há, contudo, promissores sinais de uma tomada de consciência e vontade política, fatores determinantes para o seu arranque, num contexto em que não falta a imprescindível pesquisa da comunidade académica, recetividade popular, artefactos, empresas de fabrico artesanal, comunidades guardiãs das tradições e do segredo de um sabor inimitável. A meu ver, pode ser lido como significativo o gesto da Câmara Municipal, de distinguir, no dia da Cidade, com a medalha de Mérito Cultural, classe ouro, um fundador da Confraria da Broa, Joaquim da Costa Gomes, e quatro tradicionais obreiras da Broa de Avintes (Padaria Arminda e Neto, Padaria Broa da Manelinha, Padaria Maria Cristina e Padaria Climana) pela "produção da Broa de Avintes. Símbolo identitário e de cultura gastronómica da freguesia de Avintes e do Concelho de Vila Nova de Gaia"
A fundamentação da homenagem, serve, igualmente, de justificação para a criação do Museu da Broa, num reconhecimento que pode ser visto como a sua pedra angular. Palavras ditas precisamente neste ano de 2019, em que não vemos mero acaso, antes pressentimos, a intenção política de passar das palavras aos atos.
Há, como disse, muitas maneiras de delinear um museu, de iniciar uma caminhada e o de Avintes poderá estar perto de dar os seus primeiros passos!

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