sábado, 8 de outubro de 2016

No Governo SÁ CARNEIRO

Não conhecia pessoalmente Sá Carneiro até ao dia em que me convidou para Secretária de Estado da Emigração. Fui ao seu encontro às cinco em ponto de uma tarde do início de Janeiro de 1980. Cheguei um minuto antes, recebeu-me no minuto seguinte. Pontualíssimo. Primeira impressão favorável, porque também sou. Veio à porta do gabinete receber-me, sorrindo: segunda nota favorável, porque sou adepta de "boas maneiras". Reparei no olhar intenso (intenso era o primeiro adjectivo que usaria para o descrever). A conversa foi inesperada. Para ambos, suponho. Para mim, certamente. Senti-me tão à vontade, que falei com ele como se o conhecesse há muito, como se fosse um dos velhos amigos de Coimbra. Sá Carneiro gostava, obviamente, de ser confrontado com respostas do género "não, não posso ir para o Ministério dos Negócios Estrangeiros, porque ando sempre mal penteada e mal vestida". O que era visível, apesar do levar um casaco de peles, emprestado pela Branca Amaral. Tinha sido chamada por Sá Carneiro horas antes, sem tempo para ir a casa mudar de fato e, como estava com um casacão de tweed inglês, velho e "démodé", a Branca, minha colega de gabinete na Provedoria de Justiça, me aconselhou vivamente a trocar pelo dela.... Sá Carneiro quis foi saber se falava línguas, francês e inglês. Pragmático! (Quando tomaram posse dois dos meus sucessores, por sinal ambos do PSD, que não iam além do cultivo da língua - mãe, lembrei-me muito de Sá Carneiro e da falta que ele faz). A certa altura, chamou à reunião o Ministro Freitas do Amaral, que, como Vice-Primeiro Ministro, estava sedeado na Gomes Teixeira. Iria trabalhar diretamente com ele, na veste de MNE, no Palácio das Necessidades. A três, o tom do diálogo não sofreu alteração - mais parecia uma tertúlia! O Doutor Freitas do Amaral mostrava-se, igualmente, muito sorridente. Gostei dele, de imediato. E não é dizer pouco, porque como político, até esse preciso momento, não era propriamente um dos meus favoritos. Notei, que também ele, valorizava muito o meu relacionamento com os sindicatos e foi-me alertando para uma ameaça de greve que pairava sobre os consulados. Despedi-me de Sá Carneiro no mesmo tom bem-humorado em que a conversa começara: "Senhor Primeiro Ministro, por si faço tudo: vou de escadote colar o seu “poster” nas paredes. Vou de balde e pá pintar AD nas ruas. Tudo, menos ser Secretária de Estado! Ignorou o "não" e deu-me o prazo de 24 horas, para decidir. Dali, fui, de imediato, pedir conselho ao Doutor Mota Pinto (pelo telefone, porque ele estava em Coimbra). Encorajou-me a aceitar. Depois, combinei um jantar com Rui Machete, que tinha sido responsável pela mesma Secretaria de Estado, por uns meses, antes de se tornar Ministro dos Assuntos Sociais, ainda nos governos provisórios. Colaborei nesse seu gabinete, quando dava aulas em Coimbra, e de lá saí, por sua indicação, para assessorar o Provedor de Justiça, na área da segurança social. Um e outro me encorajaram a avançar - mais a Branca Amaral, cunhada do Rui e dona do casaco emprestado para o encontro com Sá Carneiro, que se juntou a nós nesse jantar. No dia seguinte, aceitei, não sem repetir ao Dr Sá Carneiro que não me considerava à altura da missão. Respondeu-me que não me preocupasse, porque assumia, por inteiro, a responsabilidade pela sua escolha. Penso que se apercebeu de que eu "queria e não queria" envolver-me naqueles trabalhos, que estava interessada, mas insegura. Acompanhou de perto as minhas primeiras semanas no Palácio das Necessidade, com um apoio constante. Foi extraordinário! Telefonava-me para me dar informação sobre casos concretos de emigração, para me dizer como esta ou aquela das minhas iniciativas tinha resultado bem... Pretextos para me dar ânimo -e dava. Gastou comigo algum do seu tempo tão ocupado de Primeiro-ministro, até ter a certeza de que estava à vontade... Pormenor significativo: não se servia, como é costume, de secretárias para mediarem as chamadas, ligava directamente para mim, e, às vezes, enganava-se no número direto e pedia às minhas secretárias para me passarem o telefone. Imagine-se a excitação delas... Ao longo de anos, transitando de gabinete em gabinete, nunca tinham ouvido a voz de um governante, através do fio. Exemplo único e irrepetível. Um Sá Carneiro bem diferente do que preferem traçar para a história muitos dos seus biógrafos. É o caso paradigmático de Miguel Pinheiro, que até começa bem mas acaba mal, apesar de ter recolhido larga bibliografia, e ouvido muita gente. Gente parcial... uma super abundância dos que perderam, no interior da "Nação PPD", todas as batalhas contra Sá Carneiro. Bem melhor é o texto de Maria João Avillez, numa objetividade mais conseguida. Ou José Miguel Júdice, que lhe era mais próximo. Júdice, a quem uma vez, num colóquio, ouvi dizer que Mota Pinto, à frente do IV governo Constitucional, foi uma espécie de São João Baptista, que anunciou aquele que havia de vir. Disse para comigo: "Il y a du vrai". Vi sempre Sá Carneiro, acima de tudo, empenhado em levar o país para patamares mais altos, acreditando que isso era possível, de imediato, sem períodos de transição (concretamente sem Conselho da Revolução...). Caminhava em linha recta para os objectivos, vertiginosamente. Para mim, ele era o “anti-Salazar” por excelência, na medida em que confiava tanto quanto o ditador desconfiava da capacidade dos portugueses para viverem em democracia, como os outros europeus do Ocidente. Toda a sua pressa, e o que chamavam perigoso “radicalismo” ou teimosia, eram a manifestação da vontade de pôr o sistema a funcionar democraticamente, sem tutelas militares ou outras, fortalecendo as instituições da democracia representativa. No domínio particular da emigração, como no conjunto da governação, considerava essencial o fortalecimento da sociedade civil, o diálogo Estado-sociedade civil. A criação de uma Assembleia ou Conselho de representantes das comunidades do estrangeiro era a grande novidade do programa da AD, e uma manifestação dessa vontade de diálogo. O Conselho das Comunidades Portugueses (CCP) era, de algum modo, inspirado no modelo francês, tal como os que, alguns anos depois do nosso, vieram a surgir na Itália e na Espanha, e, mais tarde, na Grécia. Um órgão de representação específica dos emigrantes, que acrescia à representação na Assembleia da República (então e ainda hoje apenas quatro deputados, eleitos nos dois círculos da emigração). No meu gabinete, toda a prioridade foi concedida à feitura do diploma, com a ajuda de deputados da emigração, sobretudo o José Gama, e de diplomatas, sobretudo o do Brasil, Embaixador Menezes Rosa. Foi ele mesmo que tomou a iniciativa de vir a Lisboa falar comigo. O primeiro esboço de diploma deixou-o preocupado. Veio propor alterações que contemplassem a especificidade dos países onde o movimento associativo estava federado, como era o caso do Brasil, nomeadamente no que respeita à constituição do colégio eleitoral para os delegados ao conselho mundial. Uma proposta que consideramos pertinente. Houve outros diplomatas que deram também contributos interessantes, mas não foi possível consultar diretamente os dirigentes associativos, porque havia pressa... O CCP era a grande prioridade, e essa falta seria compensada com a consulta aos Conselheiros, com vista a uma futura revisão legislativa. Ou seja, o Decreto- Lei criava o instrumento de co-participação no processo legislativo, a partir da primeira reunião. Estabelecia as regras para a eleição do órgão consultivo, delineava as suas funções principais, e deixava aos eleitos o poder de moldarem a instituição nascente. Uma originalidade, sem dúvida. Durante os meses de janeiro e fevereiro a vida do meu gabinete esteve muito centrada no arranque do CCP. Depois de cumprir as formalidades de circulação entre os membros do executivo, depois de se ter respondido a várias sugestões e propostas de alteração, o texto final foi aprovado em Conselho de Ministros no dia 1 de Abril, dando-nos tempo de convovar a primeira reunião no verão desse ano. Porém, de Belém, tardava a promulgação. O Presidente da República General Ramalho Eanes aplicou-lhe o "veto de bolso" ao longo de cinco meses, só o promulgando em 12 de Setembro. Foi a resposta natural ao facto de o Governo ter adiado o "Congresso das Comunidades", integrado nas comemorações camonianas, cuja preparação se iniciara no Governo Pintasilgo, sob a presidência de Vítor Alves. O Congresso seria realizado a 10 de junho de 1981, sob a presidência de um militante do CDS, coadjuvado (bastante mal, diga-se) por um secretário-geral do PSD, António Cabecinha, No esquema de Pintasilgo, ao Congresso se seguiria a institucionalização de novas formas de representação dos emigrantes. O Governo da AD avançava na mesma direção com um CCP, formado por líderes associativos, à semelhança do "Conséil" francês, que, sendo pioneiro, serviu de modelo a todos os que vieram a surgir na Europa (o português, anos depois o italiano e o espanhol, muito mais tarde, o grego). Com as eleições legislativas em Outubro, e as presidenciais em Dezembro, tornava-se impraticável convocar o Conselho, de imediato. Ficou adiado para 1981, antecedendo em dois meses o também adiado Congresso das Comunidades. Entre as duas iniciativas não houve, porém, qualquer articulação, constatação do domínio do insólita, que se explica por ter sido marginalizada na preparação do Congresso, não só a Secretária de Estado, pessoa concreta, mas, o que é mais ainda pior, os serviços da Secretaria de Estado (embora não a rede diplomática e consular, lá fora, onde era preciso apoio "in loco" para as reuniões preparatórias - de qualquer forma essa rede dependia diretamente do Ministro). Este "insólito" era impensável sob a liderança de Sá Carneiro e Freitas do Amaral, mas de 81 em diante, perdera-se toda a coesão da equipa, toda a harmonia que havia reinado na AD (não me digam que as coligações partidárias não dependem essencialmente do entendimento pessoal, porque a experiência daqueles sete meses provou-me o contrário). Mesmo sem CCP (que teve de ser anunciado não como feito mas como projeto) 1980 foi um ano prodigioso. Sá Carneiro definia Portugal como “Nação de Comunidades" - mais uma “cultura do que uma organização rígida", mais Povo do que território. São palavras dele, que me são, por vezes, atribu ídas, só porque as repeti ao longo dos anos, aliás sem nunca me esquecer de o citar. Dizia que era preciso reconfigurar o Estado à medida da Nação, estabelecer a igualdade de direitos políticos entre residentes e não residentes dentro no país, privilegiar os laços de sangue e a ligação afetiva dos expatriados à sua terra, apelar às segundas gerações, promover a sua participação real na vida coletiva. A chamada "lei da dupla nacionalidade", a mobilização para o recenseamento eleitoral, a revisão das leis eleitorais discriminatórias, o reencontro pelo diálogo, não só com a emigração europeia, mas com a de além mar (bonita que, então, andava muito marginalizada nos programas da Secretaria de Estado, em todas as formas de apoio social e cultural e na cooperação com o movimento associativo. A grande marca da governação AD foi a parceria com este movimento. Houve a exata compreensão de que uma coisa são os emigrantes portugueses isolados, imersos numa sociedade estrangeira, outra são as comunidades orgânicas, com a força das suas organizações e iniciativas culturais. Foi em relação a esta realidade a que muitos chamam "Diáspora" que o Governo Sá Carneiro foi mais inovador - até então havia política de emigração, com o enfoque nas questões sócio-laboral e económica. As comunidades de cultura portuguesa andavam esquecidas, desde que o Prof Adriano Moreira. à frente da Sociedade de Geografia, as convocara para grandiosos Congressos Mundiais, em 1964 e 1967. O regime, com Marcelo Caetano, não o deixou prosseguir... A reaproximação à "Diáspora" começara e ser tentada, após o 25 de abril, nas comemorações do 10 de junho, promovidas pelo Presidente da República Ramalho Eanes, Ecoam para sempre as palavras de Vitorino Magalhães Godinho, num desses atos solenes: "Há um Portugal maior do que o império que se fez e desfez..." Há e o programa da AD era o primeiro que quis passar das palavras à ação - a par das "políticas de emigração", dedicou um capítulo próprio às "políticas para as comunidades", baseadas na trave mestra da institucionalização do diálogo com o associativismo, com o acento colocado nas questões culturais, na ideia de reencontro dos dois Portugais, que vivem um dentro e o outro fora do território. Na ideia da igualdade entre diversas formas de pertença ao todo nacional. Igualdade, também entre as emigrações, a mais antiga e a mais recente, a mais próxima e a mais distante, a europeia e a universal. Em Março fiz a minha primeira visita ao serviço dessa ideia. Comecei, naturalmente, pelas que ficam do outro lado do Atlântico: os EUA e o Canadá, de costa a costa, mais de 20 dias, mais de 20 hotéis, de cidades, dezenas de associações, de paróquias, de escolas, com longos debates públicos, entrevistas, conferências de imprensa... (o tirocínio, para quem não gostava de exposição pública e a teve em abundância). Em abril, segui para a América do Sul, Brasil (a minha descoberta do Brasil, de Manaus ao Rio Grande do Sul, dos seus grandiosos Gabinetes Portugueses de Leitura, Beneficências, Hospitais, Clubes desportivos, tudo à dimensão da grandeza do próprio país, e, também, de uma familiaridade tão imediata e completa, com os brasileiros, que os transformava em tudo menos estrangeiros), Argentina (mais uma surpresa, os seus dinâmicos clubes, a sua alegria, o seu cosmopolitismo, à imagem da sociedade argentina). Depois, a Europa - França, Alemanha, Inglaterra, Ilhas do Canal, Luxemburgo, Bélgica - a Europa portuguesa, que desconhecia mesmo em países, onde estudara ou estagiara, casos da França e do Reino Unido. O 10 de junho foi em Caracas, no já monumental, mas ainda inacabado Centro Português - uma sensação de futuro, essa cerimónia num salão ainda sem vidros nas janelas, nem soalho de madeira. Em agosto, obviamente, fiquei no país cheio de emigrantes e não parei um minuto, em colóquios e em festividades, de norte a sul - sobretudo a norte, no Minho e em Trás-os- Montes, de onde vinham, todos os fins de semana, convites irrecusáveis.Era Em Setembro, foi a vez do sul da África, de Capetown a Harare, M'Babane e Manzini, com regresso por Kinshasa. A Diáspora, num espaço cheio de história portuguesa, mas não história colonial - o rasto das caravelas e a presença bem amada, bem integrada da pura emigração, antiga e recente. Instituições com sedes espetaculares, como a Amicale Sportive Kinoise, o melhor e maior clube social de todo o Zaire, aberto a sócios de uma trintena de nacionalidades, em portuguesíssimo ambiente. Muito cordiais foram as conversas com os meus homólogos dos governos de Pretória (o Vice-Ministro do Interior, Kotze, e em Kinshasa, o Embaixador Izumbuir, Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros. Aí, fui também recebida pelo Primeiro Ministros, Doutor Karl-i- Bond, um académico, que tinha sido Professor universitário na Bélgica, para onde julgo que voltou. Ambos amabilíssimos, a contarem-me a sua ligação pessoal a portugueses, que os tinham ajudado com bolsas de estudo. Izumbuir falava português perfeitamente, tinha vindo da Embaixada em Brasília. Um organização impecável do Embaixador Baptista Martins, de quem fui hóspede na residência, que era imponente (encantadora, também, a Embaixatriz, que me levou às zonas da cidade, onde os europeus nunca punham os pés, mas onde ela fizera amizades, com ourives e outros vendedores de arte africana - era um figura muito popular entre o "povo.povo", como tive a sorte de poder constatar. Voltei a Kinshasa, muitas vezes, mas sem ela, nunca mais voltei aqueles "quartiers", tão acolhedores...). Nas viagens à América do Norte e à África, o José Gama, deputado do CDS, fez-me companhia. Nos EUA foi mesmo ele que me traçou o roteiro - tinha sido jornalista em New Bedford, conhecia tudo e todos. Era uma simpatia e um orador excecional. Falava sempre, como manda o protocolo antes de mim, e deixava as audiências empolgadas, frequentemente, em lágrimas. E eu tinha bem a consciência de ficar longe do seu patamar oratório, com um discurso terra a terra, a enumerar os diplomas que estavam em agenda, o CCP (que não entusiasmava muito) a Lei da nacionalidade (que entusiasmava imenso), o livre acesso dos jovens às universidades, o aumento da representação política, os intercâmbios culturais. Apresentados, invariavelmente, num tom coloquial. As pessoas aceitavam-nos como éramos, guardo, desta movimentação incessante, boas recordações da hospitalidade lusa, mas ficou-me a impressão de quem nem todos acreditavam piamente no rol de promessas que fazia e que, felizmente, no essencial viriam a ser cumpridas... Os encontros bilaterais, com as autoridades eram, evidentemente, preparados pelos nossos diplomatas - e de forma muito dissemelhante: Em Ottawa, o Embaixador Góis Figueira organizou uma verdadeira cimeira, quase um dia inteiro de contactos com Ministros - Axworthy, que reencontraria, anos depois, no Conselho da Europa. mais dois membros do Governo, que não voltei a ver, e uma dezena de altos funcionários públicos das áreas da imigração, segurança social, cultura, Pelo meio, um almoço oferecido pela parte canadiana. Voltei à capital do Canada muitas vezes, mas nunca mais um diplomata português mostrou esta capacidade de interlocução com as autoridades do país. Nota 20... Em Toronto, fui recebida pelo Primeiro-Ministro do Ontário, pelo Mayor. Em Montreal pelo célebre Maire Drapeau, que convidou De Gaulle a falar na varanda, de onde este soltou o seu o grito de guerra "Vive le Quebec libre!", após o que foi convidado a regressar, prontamente a Paris. Em Conneticut, o Governador do Estado, os "mayors" das principais cidades - a aí fiquei a saber que há cônsules honorários com muito mais influência na sua área do que os de carreira. Era o caso do Dr Seabra da Veiga, uma sumidade como médico-cirurgião e professor, mais famoso no meio político e social americano do que na terra de origem , que, tal com a mulher Rita veiga, se tornariam meus grandes amigos.. Em Rhode Island, encontrei a primeira Cônsul, Anabela Cardoso. Impressionou muito pela sua desenvoltura e espírito prático. Em vez de uma "limousine" levou numa espécie de grande "jeep", colocando toda a nossa bagagem atrás, porque à noite já tínhamos hotel e programa de encontros no vizinho Estado de Massachussets, mas em Providence cumprimos uma agenda cheia - audiência com o governador, receção oficial na Assembleia Legislativa, almoço com o primeiro eleito portugês, o Senador Castro, um homem muito alto e forte, jovial, caloroso. Em Boston e Harvard, acrescentámos aos contactos oficiais, visitas às Universidades, Em Brasília, as receções oficiais foram múltiplas, sempre marcadas pelo "charme" brasileiro - com ministros, congressistas, muito interesse dos "media".Em 1980, não havia praticamente, mulheres na política nacional e o exemplo que Portugal dava comigo causou sensação e fez notícia. Quem diria que, tão pouco tempo depois, o Brasil no ultrapassria, meteoricamente. com uma Presidenta, Governadoras e Prefeitas, nos principais Estados, congressistas (nota curiosa, a nível estadual, por onde começou a imparável ascensão feminina, as pioneiras foram imigrantes de nacionalidade portuguesa, ao abrigo do "tratado de Igualdade": a atriz Ruth Escobar, deputada na Assembleia do Estado de São Paulo e a médica Manuela Santos, Secretária Estadual do Governo do Estado do Rio de Janeiro).Na Venezuela, foram insignificantes os contactos oficiais durante a primeira visita, acantonada à emigração portuguesa por um embaixador político e pouco simpatizante com a AD, mas, felizmente, passei por Caracas, de novo, nas férias desse sonho, e o Encarregado de Negócio, Rosa Lã, supriu todas as omissões. Um dos muito encontros bilaterais, com o Vice-Ministro do Interior, Aristigueta- Gramco foi de crucial importância para a legalização de portugueses (maciça, mas muito discreta - a condição era mesmo essa, não a divulgar - 36 anos depois, posso, enfim,, falar disto... Na Argentina, também tive um "rendez-vous" com um simpático colega, na França, idem, com Stoléru, que não era, propriamente muito efusivo, nem muito aberto a justas concessões. na Alemanha, com interlocutores governamentais, por sinal, mais sensíveis às boas provas aí dadas pelos trabalhadores portugueses (os alemães são facilmente convencidos por factos e números, e a nossa Embaixada, sabendo isso, preparou "dossiers" convincentes, baseados em estatísticas alemãs. No Luxemburgo, a receção do governo foi fraterna, começando po. Jean Claude Juncker, até hoje meu amigo, e mais importante do que isso, um amigo dos portugueses. E até na África do Sul, as reuniões fora um sucesso - Sá Carneiro, em negociações com o Governo de então, só as permitia a um membro do seu governo - o responsável pela emigração. Sou muito direta, e, sempre que o ambiente o permite, informal e, por isso, as coisas correm particularmente bem, com políticos nórdicos, germânicos, "boers", que são mito diretos também e olham as mesuras e os floreados latinos com reserva. Ainda hoje recordo o espanto do Embaixador Coutinho a ver-me em discurso, para usar uma expressão do povo, "pão, pão, queijo, queijo", sobre problemas da nossa comunidade, com a melhor das recetividades... O meu interlocutor no governo era o Vice-Ministro Kotze, a que já aludi - um homem enorme,de porte austero que me esperava, cortezmente, na sala VIP do aeroporto e se foi tornando mais e mais simpático à medida que a conversa fluía. À hora do almoço, que ofereceu à comitiva portuguesa (diplomatas, eu e uma adjunta, que era a minha única acompanhante) já mostrava um sentido de humor muito "british", e à volta da mesa, o embaixador Coutinho, homem encantador, mas sempre com o seu ar preocupado, era o mais silencioso. Enfim, só boas recordações do que aconteceu no eixo bilateral, mas lembro-me, sobretudo, da sensação de espanto e encantamento com que percorria este "outro Portugal" - mais intenso, mais afetivo, cheio de arraiais e procissões, de saraus, de música, de folclore, de caldo verde e bacalhau, de sessões solenes à portuguesa, e, também de muitos queixumes e justas reivindicações.. Quem visita comunidades, assim, uma a seguir a outra,num curto espaço de tempo e num largo espaço geográfico, pode melhor não só avaliar as suas diferenças, como constâncias - a primeira das quais, a fidelidade às tradições, o gosto pelas coisas portuguesas. No Brasil, a sensação estendia-se, como disse. ao povo inteiro, Só a dimensão continental, os voos de seis horas dentro de fronteiras me trazia à realidade de estar num outro país, que não o meu. Não é figura de retórica, é verdade, no Brasil sempre me senti brasileira (possivelmente mais do que muitos compatriotas que lá estão há muitos anos...). Quando digo que 1980 foi o ano mais feliz da minha vida, refiro-me ao período que vai de janeiro até 4 de dezembro ...O desaparecimento de Sá Carneiro e de António Patrício Gouveia, um dos homens mais inteligentes e mais agradáveis que encontrei ao longo da vida (a quem, com grande frequência, dava conta das minhas histórias, a quem pedia conselho. Era mais novo, mas mais sábio do que eu. Não era diplomata, mas parecia - falava do Ministério dos Negócios Estrangeiros e das suas particularidades, como se pertencesse à carreira. Um choque a sua morte, a de Sá Carneiro, a de Adelino Amaro da Costa (com quem tive pouco contacto, mas o havido bastou para o ver como uma espécie de Guterres do CDS). Acredito que com eles tudo teria sido diferente. Alguém imagina Sá Carneiro a dizer, por exemplo, que "Portugal é o bom aluno da Europa"? A aceitar esse tratamento para um país quase milenário, de cultura universalista, face a países com pouca história e "pouco mundo"? Sá Carneiro fez falta ao nosso país, e não só - também ao sul da à Europa, à Europa inteira... Mário Soares, o outro grande político que emergiu da revolução, ficou demasiadamente só....

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