sábado, 8 de outubro de 2016

NO GOVERNO (5 VEZES) - Governo MOTA PINTO

No início de uma participação política em órgãos de soberania, que haveria de se prolongar por mais de vinte e cinco ano, esteve um convite do Prof. Mota Pinto para o seu governo (1978/79). Tinha a particularidade de ser formado por independentes - um dos chamados "governos de iniciativa presidencial", não menos constitucional do que os outros, já que o seu programa passara (sem ir a votos) na Assembleia da República. O anterior, também nomeado pelo Presidente Eanes e chefiado por Nobre da Costa, objeto de uma moção de rejeição, caiu ao ver o seu programa rejeitado. Com eleições obrigatórias em Outubro de 1979, aquele era, de qualquer modo, um executivo destinado a durar cerca de um ano e foi ainda mais breve. Quando, depois de aprovado o orçamento de 79, que provocou uma cisão no PSD, os principais partidos ameaçaram, já nem me recordo a que pretexto, com uma moção de rejeição, o Doutor Mota Pinto não esperou muito para apresentar o pedido de demissão, simplificando o processo. E não se manteve em gestão, porque o Presidente optou pela constituição de um terceiro e último governo desta série, com uma duração estimada de três meses (embora tenha durado bastante mais), a fim de organizar eleições. A maior surpresa foi ter escolhido uma mulher: Maria de Lurdes Pintasilgo. Curiosamente, depois dela, desde que todo o poder foi retomado pelos partidos, não houve mais nenhuma... É obviamente mais difícil a ascensão feminina no puro quadro das maiorias parlamentares, pois as máquinas partidárias são coutada de homens - eram, e continuam a ser, regra geral. Já lá vão 37 anos! Thatcher e Pintasilgo, as primeiras a ocupar o cargo, com apenas algumas semanas de intervalo, faziam, então, história na Europa. Lideranças masculinas nos grandes partidos, dão primeiros- ministros, no masculino, numa perfeita relação de causa e efeito. Quando me perguntam a razão porque escolhi a política, a resposta é "não escolhi". De facto, fui convidada e pela circunstância de ser independente de qualquer partido. Para ser uma presença feminina num governo quase 100% masculino. Entrei na aventura,( que à partida seria breve e, como disse, o foi mais do que o previsto ), por me ser difícil dizer "não" ao Primeiro Ministro, que era um amigo de Coimbra, assim como ao parceiro de equipa no Ministério do Trabalho, o João Padrão, um colega de curso (brilhantíssimo!), que se ocupava do Emprego. Hesitei, mas fui bastante pressionada, sobretudo pelo João. Ofereci-me como voluntária para a assessoria no seu gabinete, mas não consegui ser aceite nessa mais modesta, mas bem conhecida posição (prestei serviço nessa qualidade, desde os primeiros governos provisórios). Tinha as minhas razões, não queria ser chefe de ninguém, faltava-me a paciência para esperar que outros fizessem as coisas por mim. Não sabia mandar - tive de aprender e, por acaso, não foi tão difícil como imaginava. Não era, pois, essa a minha opção de vida - dar aulas na Faculdade ou pareceres num centro de estudos, ou na Provedoria de Justiça: eis o meu sonho do presente e do futuro, aos 36 anos, para melhor usar o que a Universidade de Coimbra me ensinara. Com tempo para o cinema, (quase todos os dias, pelas 18.00), o desporto e o convívio com a família, as tertúlias de café, nos fins de semana, em Espinho. Tempo para ler e ouvir música (os meus velhos discos de vinil) e passear a minha cadela Serra d'Aires/cão de água, na Avenida do Uruguai, onde uma a Maria Póvoas, uma maravilhosa governante, que estava connosco há três gerações, cuidava do meu apartamento. Não me parecia que na vida política houvesse lugar para tudo isso. Pior ainda era a convicção de que o mundo do trabalho perderia uma executante suficientemente competente e o da política não ganharia nada com a troca. À mistura com o receio de falhar havia, porém, uma boa dose de curiosidade de conhecer o "outro lado", o lado do "poder" - neste caso, muito relativo e garantidamente efémero. Não sabendo como dizer "não", acabei Secretária de Estado do Trabalho. Fui para um Ministério que conhecia bem: ali mesmo, no arranha-céus da Praça de Londres, no início de 1967. tomara posse como assistente do Centro de Estudos, cerca de um ano depois de ter terminado o curso de Direito (com a média de curso exigida aos assistentes da Faculdade ou daquele "centro de estudos - não bastava, como em Passárgada, ser amigo do rei...). Um lugar de boas memórias, onde tudo me era familiar, os assuntos, os problemas e até algumas das caras que via nos corredores. Apesar da mudança de regime, o que havia de bom no Ministério se mantinha, antes de mais, a qualidade dos funcionários e dos serviços, dos velhos directores- gerais de carreira (à inglesa), que se distinguiam pela competência, bem mais do que por quaisquer tendências ideológicas. Por sinal, coube-me acolhe-los de volta à atividade, a eles e a muitos dezenas de dirigentes que tinham sido saneados, em 1974, e, depois, reintegrados por insuspeita decisão do Conselho da Revolução. Foram todos colocados em funções técnicas, para sua tranquilidade´, já que a nossa era imperturbável. Quatro anos apenas depois da revolução, os gabinetes dos membros do governo eram pequenos, como mandava a lei - um chefe de gabinete, dois adjuntos, dois secretários, dois motoristas. E assim foi enquanto estive nos Executivos, até 1987. Depois, parece que as coisas foram mudando, através de expedientes para recrutar gente vinda sobretudo dos partidos , com vencimentos "à la carte". Procurei, pois, compensar a minha falta de experiência com uma seleção, norteada pela procura desse atributo que me faltava. Desde já antecipo que resultou. Recomendo a solução. Escolhi os dois adjuntos dentro da "casa" (uma mulher e um homem), trouxe para chefe de gabinete o Manuel Marcelino, colega do Serviço do Provedor de Justiça, uma sumidade na área do Direito Administrativo. As duas secretárias, formadas no ISLA, tinham longo curriculum de gabinetes. Ajudaram-me, poderosamente, a atravessar o tempo iniciático - uma equipa unida nos bons e maus momentos. E destes, houve alguns. Não tanto pelos conflitos sociais, negociações, greves... verdadeiros "braços de ferro", uma requisição civil, etc, etc. Com o "adversário exterior" lidávamos nós bem. Com o interno, nem sempre... Não foi sempre pacífico o relacionamento com o Ministro e o seu "staff". Vinham do sector privado, convencidos da sua superior eficácia - o ministro até era eficaz, muito melhor do que a "entourage", ao contrário do que comigo se passava. A qualidade dos quadros do Ministério acabou por convencer o Dr Eusébio Marques de Carvalho, que fez lentamente a "estrada de Damasco" na Praça de Londres. Mais difícil de converter era o seu chefe de gabinete. Julgava-se o "chefe" dos chefes de gabinete dos Secretários de Estado. Ora não há vínculo hierárquico entre os gabinetes, embora haja entre o Ministro e cada um dos Secretários de Estado. Com ele, as coisas nunca melhoraram. O João Padrão foi o maior obreiro da paz, naquele 16º andar da Praça de Londres... Um homem encantador, com uns vivíssimos olhos azuis, um apurado sentido de humor e da relatividade das coisas. Muito inteligente, um diplomata e um grande amigo. Sempre que eu irrompia no seu gabinete, contíguo ao meu, a relatar um novo "caso" e a ameaçar demitir-me, oferecia-me um café, desdramatizava, entre sorrisos e amena conversa, e logo reduzia a dimensão do incidente... A esta distância, vejo que se tratava de uma falta de "savoir faire" do reincidente, que, aliás, era um homem de boas maneiras e agradável à vista - comigo muito simpático, mas não tanto com o meu gabinete... Talvez na empresa de onde vinha, esse comportamento fosse aceitável, mas na função pública eu estava habituada a mais civilidade. Os meus "chefes" formavam uma galeria de verdadeiros "gentlemen". Ali, na Praça de Londres, o Dr Cortez Pinto, cerimonioso, educadíssimo, e o Doutor António Silva Leal, um sábio, um génio, exuberantemente cordial, descontraído, que se sentava nas escadas do corredor a apertar os atilhos dos sapatos - "para que não tenham a tentação de me fazer ministro", explicava, entre duas sonoras gargalhadas. Depois da Revolução, na Universidade de Coimbra (onde tomei posse a 24 de abril), o Doutor Boaventura Sousa Santos, o Doutor Rui de Alarcão, o Doutor Mota Pinto. Em Lisboa, no Governo, o Doutor Rui Machete, na Provedoria de Justiça, o Coronel Costa Bráz, em meados de 1976, e, poucos meses depois, tendo ido o Coronel para o Governo, organizar eleições livres, o incomparável Dr José Magalhães Godinho - que foi, para mim, o mais próximo e o mais querido de todos. Tinha uma memória fenomenal e muita graça a contar as histórias da História. Era generoso, solidário, carismático e acessível. O mesmo não se diria do Dr. Eusébio Marques de Carvalho, com o seu feitio impulsivo e impaciente, e, tal como eu, "estreante" em lides governativas. Acabou por me influenciar mais do que todos os antigos e tão estimados "superiores", converteu-se em verdadeiro "role model"... Por um espontâneo mimetismo, dei por mim a tomar decisões rápidas e a exigir execução pronta. Com o que, sem que fosse esse o meu objectivo, se construiu a imagem que dei para o exterior "dama de ferro", na esteira daquele "homem de aço". Imagem mais ou menos positiva, segundo a perspectiva do observador. Mas a essa imagem devo, com certeza, o convite seguinte, para a pasta da Emigração. O tempo era de guerra, de afrontamento e contraditório, na aprendizagem da democracia, a começar no MNE, em guerra aberta com a Presidência. Numa das primeiras conversas com o Doutor Freitas do Amaral, no Palácio das Necessidades, disse-lhe que já se murmurava pelos corredores que eu iria revolucionar tudo, que não deixaria "pedra sobre pedra". Ao que ele me respondeu que não me preocupasse, porque era um tipo de fama não prejudicava a acção concreta. Talvez fosse "mais a fama do que o proveito", mas é verdade que parti para a inovação possível, embora mantendo tudo o que encontrei bem, nas práticas ou nas pessoas. Trabalhara os anos suficientes na função pública, ou com a função pública, para acreditar, até prova em contrário, que as pessoas estão nos seus postos para cumprirem tarefas e não para fazerem espionagem ou conta-corrente, a mando de forças ocultas. Suportei, logo na primeira experiência governativa, a pressão para despedir uma secretária, a Ana, que tinha transitado do gabinete do meu antecessor, supostamente comunista. A Ana era oriunda do quadro da Presidência do Conselho de Ministros e tinha-me sido recomendada pelo Secretário de Estado, Doutor Xavier de Basto, como muito competente. "Durante duas semanas fez de chefe de gabinete e de secretária, foi formidável, mas agora chegaram as pessoas que eu já tinha convidado e não tenho vaga para ela", dizia-me ele. (ali no alto da presidência, também tinha de respeitar os limites quadro legal...). "Ela conhece bem esse ministério, secretariou o seu antecessor". "Isso é que é pior" - disse - "o Ministro não quer, por perto, ninguém que tenha vindo dos anteriores gabinetes". O sigilo e a confidencialidade eram importantes, ali, onde se esperava já a conflitualidade, que veio a verificar-se. Contudo, como o meu amigo e professor de Coimbra, um homem particularmente perspicaz, a recomendava, contratei-a, de imediato. Pouco depois, alguém a denunciou e foi-me sugerido o seu afastamento. Recusei a sugestão, apesar do Ministro me prevenir, muito irritado: "No meu gabinete e no do Secretário de Estado do Emprego toda a gente é de absoluta confiança. Se houver uma fuga de informação é do seu gabinete. "Com certeza! Mas não vai haver problema!", tranquilizei-o. Isto é, não devo ter tranquilizado, mas, provou-se que tinha razão. Fuga de informação foi coisa que não houve. Nem Ministro nem mais ninguém jamais suspeitou que a Ana também tinha sido secretária e tradutora do Vasco Gonçalves! Imagino a reação, se descobrissem esse passado, aliás, nada secreto, porque ela era simplesmente oriunda dos quadros da Presidência. Foi convidada por uma boa razão, a sua competência. A par do "segredo" estava a outra secretária, a Maria de Lurdes. O que nós nos ríamos, a traçar cenários de pânico se a ligação, puramente profissional, viesse a ser detetada.... Na verdade, nunca fiz nomeações de pessoal vindo das profundezas dos partidos, nem para chefias de departamentos, nem para o "inner circle". A excepção terá sido um ou outro caso, fora de Lisboa, onde não conhecia alternativa aos nomes que me indicavam. As minhas preocupações eram outras: a primeira, descobrir talento e experiência profissional, a segunda a paridade de género. Tive a sorte de encontrar, no fundo de uma gaveta, um anteprojeto enviado ao Ministério do Trabalho pela Comissão da Condição Feminina e dei-lhe pronta sequência. Nomeei uma comissão, presidida por um homem, justamente para contrariar a ideia de que os homens não se devem preocupar com as chamadas "questões femininas", que são, evidentemente, questões de direitos humanos, Convidei, claro, o homem certo, o Dr. João Caupers, grande jurista, dinâmico e capaz de cumprir prazos muito curtos, E cumpriu, elaborando relatório e anteprojeto de lei, depois de terem sido ouvidas todas as entidades de uma longa lista de consultas, em primeira linha, sindicatos e associações patronais. Assim, nasceu a CITE (Comissão para a Igualdade no Trabalho e Emprego). Inspirada no "Ombudsman para igualdade", na legislação sueca, que visa assegurar, "em condições iguais, preferência ao sexo sub-representado na profissão". Aqui ainda não era possível ir tão longe. Assim mesmo, como surgiu, a CITE, com a sua composição tripartida (governo, sindicatos, associações patronais) foi, na altura, considerada "avant-garde", em termos de direito comparado. O projeto foi integrado, por vontade do Ministro (que nunca levantou obstáculo a estas minhas iniciativas), num muito mais vasto "pacote laboral". O governo caiu antes da sua promulgação e o seguinte, de Maria de Lurdes Pintasilgo, decidiu vetar o pacote, globalmente. Não desisti, falei com o meu sucessor, Dr. Ribeiro Ferreira, um dissidente do PPD - dissidência aparte, um político muito simpático, que eu conhecia no gabinete de Rui Machete. Expliquei-lhe a singularidade do projecto, ele compreendeu a sua importância e tudo fez para o salvar. Conseguiu. O decreto-lei foi promulgado em pleno mandato de Pintasilgo, ainda com a assinatura de Mota Pinto. Todavia, nem todas as batalhas "feministas" foram ganhas. Foi impossível evitar Portarias de Regulamentação de Trabalho (PRT's), com salários de enorme disparidade para tarefas definidas como masculinas ou femininas. Esbarrei na oposição dos sindicatos, para além da dos patrões. Nada fácil, mas concretizada, foi a nomeação da primeira mulher para chefiar uma delegação distrital do Ministério do Trabalho (em Aveiro) e das primeiras mulheres Inspectoras do Trabalho - várias, de uma assentada. Encontrei algumas delas, anos e anos depois, numa visita que fizeram à Assembleia da República, talvez para participarem nalguma audição, não me recordo das circunstâncias. Procuraram-me para me dar notícias sobre as suas carreiras. A que vinha à frente disse-me logo: "Sabe, sou uma daquelas primeiras inspectoras, que nomeou". Estava em rota ascendente na carreira. Pelo visto, o Inspector-Geral, que era um magistrado, não quis ser apenas condescendente com o poder político (feminino), velou, e muito bem, pala qualidade das escolhas. Foi mérito dele, eu não interferi no processo. Gostei de as conhecer, quase uma década depois - o IV Governo fora tão breve, que não tinha havido essa oportunidade em 1979. A verdade é que às mulheres pioneiras se exige, quase sempre, mais do que aos homens, e que, para se moverem na política, elas têm, em regra, menos à vontade do que eles. Eu contava-me na regra. Providencialmente, as funções de Secretário de Estado do Trabalho não tinham grande visibilidade mediática. Quem estava sempre em cena era o Ministro - situação ideal, porque eu preferia o trabalho "de interior", detestava falar em público e dar entrevistas. Das poucas intervenções públicas a que não escapei, algumas incidiram sobre trabalho feminino. As audiências ficavam, por vezes, perplexas com o discurso da Secretária de Estado, que se assumia como "feminista" naquele particular governo, conotado à direita. Mas eu, crente e praticante do "verdadeiro feminismo", tal como o definia Ana de Castro Osório (nele abrangendo os homens bem formados e sensatos, preocupados com a valorização da metade discriminada da humanidade) passei, naturalmente, à acção concreta, com inteiro aplauso do Ministro, e do Primeiro Ministro, que, de mim, não esperava outra coisa. Dos "media" mantive distância máxima, com uma só entrevista, dada ao jornal "A Bola", sobre o caso mais escaldante, ou, pelo menos, mais badalado que me passou pelas mãos, a transferência de jogadores de futebol para o estrangeiro. Contra tudo e contra todos, autorizei a saída, sem restrições, por uma pura questão de princípios - no caso concreto, o princípio de liberdade de circulação. Considerava inconstitucional a PRT, que impedia a contratação para o estrangeiro dos jovens, que não tivessem um mínimo de idade e uma permanência de, pelo menos, três anos no mesmo clube. A meu ver, esta última exigência violava o "direito à emigração" de cidadãos, que eram jogadores de futebol, sem deixarem de ser cidadãos iguais aos outros. Ora, se, por exemplo, um atleta mudasse, várias vezes de clubes, dentro do país, não permanecendo em nenhum deles por aquele período de três anos, nunca poderia exercer a profissão fora de fronteiras. Foi o fim do mundo!...Consegui uma espécie de antecipação da doutrina estabelecida, anos depois, sobre o caso Bosman. Os jovens que beneficiaram da minha interpretação jurídica, eram, por acaso, do SCP, que vendeu os passes a um clube americano de Boston (os Tea Men?) por somas à época extraordinárias. O Keita, o Jordão e outros. Felizmente, não eram do meu clube. O FCP até estava contra, o Benfica também. Diziam os especialistas que tal abertura iria pôr em causa o futuro do futebol nacional... O despacho era conjunto com o Secretário de Estado do Desporto, mas eu mantive-me irredutível, com os meus argumentos juridico-constitucionais, e ele assinou, ainda que contrariado. E o caos, que se anunciava, não aconteceu. O Ministro deixou-me fazer a "revolução", sem se intrometer. Era um desportista - corria todas as manhãs, antes do pequeno almoço - mas não creio que fosse um entusiasta do "desporto-rei". Deve ter gostado que eu fizesse frente à pressão dos poderosos do futebol. Era "linha dura" e muito corajoso. Teve, nomeadamente, a coragem de aceitar na sua equipa, na pasta do Trabalho, uma mulher, o que então surpreendia, mesmo na Europa mais progressista. Estive em duas ou três reuniões internacionais e os interlocutores perguntavam, invariavelmente: "É Secretária de Estado do Trabalho Feminino?". Quando retorqui: "Não. Do Trabalho, globalmente", manifestavam espanto: "Tem a negociação com os sindicatos?" Confirmava e estranhava a estranheza deles, porque problema com os sindicatos pelo facto de ser mulher, foi coisa que não aconteceu. Houve muitas greves em sectores chave - como o sector portuário, as comunicações... . mas contendiam com o patronato, ou com o governo, sendo para o caso indiferente que no governo estivessem homens ou mulheres. Mesmo sem querer e sem fazer nada demais - apenas o que era minha função, à frente de excelentes negociadores dos serviços do Ministério - ganhei uma aura de "resistente". Apercebi-me de que tinha essa fama na primeira conversa com o Dr. Sá Carneiro. Quando argumentava que o pelouro da emigração era especialmente difícil para mim, contrapôs: "Mas a Srª Drª foi Secretária de Estado do Trabalho!" (o tom era de quem considerava que aí residia um expoente máximo de dificuldade). Parece-me que achou que eu fazia humor, quando retorqui: "Oh, Não! Isso não foi nada de complexo! Lidava com questões jurídicas e técnicas, despachava tudo rapidamente, deixava a secretária livre de papéis ao fim do dia.". Era verdade. A política do governo era clara, não havia que enganar na hora da decisão. Os processos vinham bem instruídos. O Chefe de Gabinete escrutinava cada palavra, na dúvida os adjuntos, especialistas de Direito do Trabalho, davam parecer, avaliávamos em conjunto os dossiers mais controvertidos. Óbvio, a responsabilidade política era minha. Quando havia que falar aos "media", o Ministro lá estava, sempre pronto a isso. O que mais poderia eu desejar? Sá Carneiro, ao contrário de Mota Pinto, não me conhecia pessoalmente, não sabia da minha aversão a falar de improviso, para plateias, para jornalistas. Era óbvio que a pasta da Emigração obrigaria a isso, constantemente. E a viagens, também - e eu tinha medo de andar de avião. Bem! Aprendi que tudo isso só custa a primeira vez. A segunda já é rotina. Sem o meu feminismo, não teria havido uma primeira vez, para mim, na política, Protestava tanto contra a ausência de mulheres nos Governos, que não pude recuar, quando eu própria era convidada o cargo. Realmente, nesse tempo, mulheres no Governo eram raridade (antes, com Caetano,apenas uma Subsecretária de Estado, no domínio da assistência, Maria Teresa Lobo). Pintasilgo foi Ministra dos Assuntos Sociais nos Governos Provisórios. Maria de Lurdes Belchior, ocupou a pasta da Cultura, já não sei em que governo. Com Pintasilgo, Primeira-Ministra esteve Teresa Santa Clara Gomes... fez mais convites, que foram recusados, Vinham todas de fora dos partidos, onde o poder se enraíza. Como eu própria. Sem Mota Pinto, como disse, eu também não teria aceite o desafio... Ele era um político diferente, que avançava com um sentido de missão - não só no discurso, mas na realidade. O primeiro declaradamente "não socialista" depois da revolução de 74. O ter resistido às pressões "da rua" (como então se dizia), o ter conseguido "governar", com firmeza, ainda que apenas durante nove meses, foi um grande passo na história pós revolução. Não há democracia sem a possibilidade concreta e concretizada de viragem, como a que Mota Pinto representou. Sá Carneiro haveria de salientar justamente a importância matricial da alternância democrática, no discurso de tomada de posse, reivindicando para o seu governo o título de primeiro governo de alternativa saído do sufrágio popular. O que era exacto, já que o anterior, de Mota Pinto, não resultara directamente do voto, mas de nomeação presidencial. Acredito, porém, que sem a experiência vivida ("ver para crer"...) que ele protagonizou, a maioria do povo português não teria arriscado dar a vitória, aliás muito estreita, à AD, em fins de 1979. Os Ministros e Secretários de Estado do Prof Mota Pinto eram, quase todos, independentes da área social-democrata e seriam chamados para o Executivo da AD. Fui um caso, entre outros. A única mulher, obviamente. E, por impulso, filiei-me no partido, que era ideologicamente o meu, tornando-me, assim, a primeira militante do PSD a integrar um Governo da República Portuguesa.

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