quarta-feira, 26 de outubro de 2016

O Livro doa Amigos de MÁRIO LAGES

É um privilégio dar a minha singela contribuição para este livro, que é um ponto de encontro das memórias de cada um de nós sobre algumas das histórias passadas com Mário Lages. Um livro que é, assim, uma "viagem de descoberta" de um ser humano admirável, dotado de muitos e variados talentos, alguns inimagináveis! Por isso, cada depoimento pode trazer-nos surpresas, sempre boas, porque há na sua vida uma essencial coerência de ideias e de ações. Homem de causas e, igualmente, de imensa energia e generosidade concreta. Comunicativo, alegre e muito discreto, com o seu fino sentido de humor. Um militante do humanismo no quotidiano, um cristão verdadeiro, de quem, depois de partir do nosso convívio, poderemos, em definitivo, dizer que "passou por esta terra fazendo o bem". Conheci-o há quase 50 anos, na Casa de Portugal da "Cité Universitaire" de Paris. no início do ano académico de 1968/69. Tornou-se, logo, a figura central de um grupo de jovens portugueses, (bolseiros, investigadores em diferentes áreas, quase todos a iniciarem uma primeira experiência de estudos fora do país), graças a um dom natural de convivialidade e ao seu gosto de partilha, que começava na partilha de informações utilíssimas - sobre como lidar com a burocracia local, onde obter livros com descontos para estudantes, onde fazer refeições económicas fora do perímetro da "Cité"...- e continuava na partilha de ideias, de preocupações sociais, na envolvência cívica. Os ventos políticos que agitavam a França e Portugal, embora de origem e direção diversas, convidavam igualmente à participação. Um duplo convite a que dissemos "sim". Resolvemos começar ali mesmo, na Casa de Portugal - com eleições, naturalmente. Uma das regras inovadoras, que maio de 68 tinha imposto na "Cité", era o "droit d' affichage", um passo largo no sentido da co-gestão. No exercício desse direito, sem consulta ou pedido de autorização ao Diretor da Casa, que, nessa altura, pertencia à Fundação Gulbenkian, afixámos a respetiva convocatória, apresentámos listas, realizámos e vencemos o ato eleitoral. Digo "nós", porque estive entre os proponentes, juntamente com Mário Lages e muitos dos que constituiriam o grupo de amigos, que se consolidou a partir daí, e ainda existe. Não me recordo já dos nomes que compunham essa lista, para além do presidente da assembleia de estudantes, o Luís Galvão Teles. O desenlace eleitoral não agradou ao Diretor que o contestou, de imediato, afixando um aviso em que acusava "uma trintena de residentes" de terem desencadeado aquele processo, à margem dos estatutos da instituição. Afinal, pas de droit d' afichage"... O ato eleitoral foi repetido, nós afastamo-nos, de vez, desse campo de ensaio democrático frustrado, não guardando da querela mágoas ou ressentimentos, mas apenas o rótulo de "católicos progressistas" e a vontade de assumir essa pertença. Concentramo-nos, sem mais, na preparação de combates futuros, pelo debate e reflexão no interior do grupo e, o que não foi menos importante, ao ameno e constante convívio, em que se teceram laços de afecto indestrutíveis. Gostei de saber, agora, há pouco, por acaso, ao conversar sobre Mário Lages, que também ele falava sempre dessa estada na " Cité", como um tempo muito feliz. Qual de nós não diz precisamente o mesmo? Tudo, então, era pretexto para festas e celebrações - os aniversários, por exemplo. Uma trintena de aniversários! Nos tempos livres, visitávamos catedrais e museus, frequentávamos cinemas, livrarias, cafés, discorríamos sobre mil e um assuntos, infindavelmente. E, assim, neste ambiente de tertúlia e de reflexão crítica, se construiu uma comunidade coesa, em terra estrangeira, como tantas outras em que os expatriados recriam um espaço nacional, sem rejeição do que o circunda - emigrantes "temporários", com uma situação bem diferente da maioria dos trabalhadores portugueses que, em massa, estavam a demandar os subúrbios de Paris, mas nem por isso inibidos de exprimir, do mesmo modo, a solidariedade entre pessoas na adaptação a um mundo novo. Compartilhávamos valores, saberes, lazer, como uma grande família no interior de um lugar pequeno, como numa aldeia portuguesa em que todos são parentes, para não dizer "como numa república de Coimbra", só porque acho que nos faltava completamente o toque boémio. Nem boémios, nem "enragés", embora acreditássemos nas profundas transformações sociais e políticas que teriam de acontecer. Mantínhamos as nossas diferenças, sem conflitos, nem cisões, entre iguais, mas com uma liderança espontânea, não imposta, não declarada, não assumida, e, nem por isso, menos decisiva. Responsável, em primeira linha, pela harmonia reinante foi a personalidade de Mário Lages. Disponibilidade constante, simpatia, e bom senso, conselho dado de um modo simples e direto, faziam dele um involuntário, mas autêntico, "primus inter pares". Sensível aos problemas de cada um, com a perfeita compreensão das pessoas e das situações. Um Homem de Ciência, ou melhor, no plural, de ciências - teologia, sociologia, etnografia... - . já com um brilhante doutoramento em Roma e outro em curso, ali, em Paris. Um Homem voltado para as Artes, a escrita, a música (cantava, tocava órgão e outros instrumentos), a fotografia. Um amador de todas estas e de outras Artes, exímio em tudo o que empreendia, facilmente superando os melhores profissionais. Um exemplo: foi ele quem, na altura, fotografou as telas de Nadir Afonso para uma sumptuosa edição das suas obras. Nadir era outra inesquecível personagem da Casa de Portugal, em fins da década da década mítica de sessenta. Um génio da pintura, com um esfuziante sentido de humor, faceta que o terá aproximado de Mário Lages. Um caso de admiração mútua! Pena foi eu não ter gravado alguns dos divertidíssimos momentos que passei a ouvi-los... Com Nadir não tínhamos contacto diário, tal como com amigos que moravam fora da "Cité", e nos faziam visitas muito apreciadas. porque se integravam perfeitamente no nosso círculo de conversação, como o Padre Januário Torgal Ferreira (trazido pelo Mário) ou o Alfredo de Sousa, compadre da Eduarda Cruzeiro. Sobre o tema fotografia, devo acrescentar que Mário Lages não se limitava a tirar retratos com uma máquina "topo de gama", pois se comprazia a completar o ciclo criativo, revelando as suas próprias fotos, num pequeno laboratório de uma das residências bem perto da nossa - não me lembro exatamente qual. A da Suiça, suponho. Sempre pronto a ensinar, convidou-nos para uma espécie de aulas práticas e logo viu crescer o número de discípulos aplicados, entre os quais me contava. Nos meus álbuns ainda hoje conservo algumas dessas fotos, em muito bom estado de conservação, sinal da competência do mestre. Outro terreno em que se distinguiu: o automobilismo, condução, corridas! Ao volante transformava-se por completo, como pudemos testemunhar depois que comprou um Austin mini. O tranquilo e erudito professor que media as palavras e não era dado a qualquer tipo de radicalismo, abria aqui uma exceção e fazia autênticos ralis, por entre as filas de trânsito parisiense, onde vale (quase) tudo, inclusive ultrapassar pela esquerda e pela direita. Ninguém o conseguia seguir. Era normal tomar a dianteira e desaparecer lá à frente, num ápice. Por isso, nos passeios dominicais, em excursão de várias viaturas, traçávamos um plano prévio, com paragens e destino final pré- definidos. E uma vez em que não o fizemos, em viagem para Portugal, no verão de 1969, perdemo-lo praticamente à saída da "Cité" , no "péripherique", para nunca mais o vermos . Ia eu no Volkswagen da Eduarda Cruzeiro, (por acaso, também excelente condutora, mas não tanto) e ela, quase até chegar à fronteira portuguesa, insistia em almoçarmos em esplanadas junto à estrada, na esperança de o reencontrar, com o seu "equipa". Esperança vã. Um episódio que mostra bem como a vida era diferente, sem telemóvel... Aliás, as peripécias com o famoso "mini" começaram cedo, na "rodagem", completada numa ida e volta a Amsterdão (1000 km de boa estrada plana). Chegado à chamada "Veneza do norte", com dois ou três colegas, decidiu estacionar junto ao primeiro canal que lhes oferecia uma vista pitoresca e aparentemente singular. Daí, seguiram todos a pé para o centro, onde jantaram. Pelo caminho, atravessaram pontes, trechos parecidos, despreocupadamente... O problema surgiu, na hora de localizar o "mini", numa densa rede de canais, excessivamente semelhantes na sua beleza pitoresca. Foram horas de deambulação. Depois, em Paris, uma vez por outra, à noite, quando a visibilidade o permitia, passava sinais vermelhos - o que os franceses designam, aliás benignamente, por "bruler les rouges". Era rápido e ágil na argumentação e na condução automóvel, como no desporto, que praticávamos, quando as condições meteorológicas deixavam, nos campos de jogos situados convenientemente em frente à Casa de Portugal. Os relvados que a separam da vizinha Casa do Brasil eram um espaço tranquilo, onde descansávamos dos exercícios atléticos, ou, onde, em dias de sol, nos sentávamos à conversa, após tomarmos um cafezinho brasileiro. Mas café ótimo, delicioso, era o que Mário nos oferecia, vezes sem conta. Café arménio, que ele sabia preparar a preceito, numa cafeteira própria, de metal, com uma base larga, remexendo o pó na água fervente. Como eu era a maior apreciadora dessa bebida exótica, em que o líquido se mistura com o pó, quando não o deixamos assentar, deu -me uma cafeteira igualzinha à sua, que eu guardo, como lembrança das animadas discussões "à volta de uma chávena de café", muito embora não saiba usá-la. O café oriental era uma raridade, sem dúvida, e constituia mais uma evidência de como o nosso Amigo passava dos estudos arménios ao relacionamento fraterno com pessoas concretas e adotava, prontamente, os seus costumes. Tinha colegas arménios, de quem falava com entusiasmo, do mesmo modo que nos relatava avanços na investigação académica. A cafeteira não seria o único presente que dele recebi. Os outros foram livros, todos muito mais utilizados: " Le Nouveau Testament", traduzido para o francês, sob a direção da Escola Bíblica de Jerusalém (na sequência de muitas conversas sobre religião - no meu caso, então, realmente, em busca de respostas para uma crise de fé...), um álbum de arte africana, "um pocket book" de PG Wodehouse, por sinal um dos mais hilariantes da série de Blandings Castle - PG tornar-se-ia o meu autor favorito- e, por fim, o seu ensaio etnológico sobre "Vida/Morte e Diafania do Mundo na História da Carochinha", que é de leitura obrigatória, absolutamente fascinante, tanto do ponto de vista científico como literário. Livros que abrem horizontes - uma das suas grandes missões de vida... São tantas e tão boas recordações! Hoje também já o é a única que podia não o ter sido: um 14 de julho, que comemorávamos pacificamente numa esplanada do "Quartier Latin". De repente, sem razão aparente, eis que irrompe a polícia no alto da rua, que era íngreme e estreita, varrendo os turistas à bastonada! Logo se formou um tropel de criaturas vindas de os lados, ruela abaixo. Ficámos irremediavelmente separados uns dos outros. A Eduarda e eu, por sorte, "integrámos o pelotão da frente" e, ao virar de uma esquina, entrámos por um portão, que estava oportunamente aberto, e fomos recolhidas com palavras amáveis dos donos da casa. Pareciam gente muito habituada a recolher passantes em fuga. Com eles, do alto de uma janela, assistimos à cena de inusitada violência de que foram vítimas alguns dos nossos queridos compatriotas, entre eles, o Mário. Um susto enorme, que se saldou, do mal, o menos, apenas nuns "galos" na cabeça de respeitáveis cidadãos. Foi o mais próximo que estivemos de uma das "bagarres" do pós Maio 68, numa França ainda não recomposta de múltiplas formas de sobressalto. Regressados a Portugal, tentámos lutar contra a dispersão na geografia lisboeta, continuámos a reunir, com frequência, por alguns anos. Contudo, no meu caso, como no de outros, as ocupações, as ausências constantes de Lisboa, do país, levaram-me a perder a ligação assídua com "o grupo de Paris", durante mais de três décadas, até à data da homenagem prestada a Mário Lages, na Universidade Católica, aquando da sua jubilação, que foi seguida de um jantar informal, num restaurante em que reencontrei a Luísa e o António Marques de Carvalho e conheci a Ana Costa Lopes (rimos tanto, que me parecia estar de volta a Paris, à "Cité", à nossa cidade dentro da cidade!). Recomecei a participar em convívios, já não de uma "trintena", mas de uma dezena de bons amigos. Reatámos o diálogo, à volta do Mário, como nos velhos tempos, como se não tivesse havido hiatos. Com o mesmo contentamento, a mesma espontaneidade. Acho que só não esculpimos um boneco de neve e não arremessamos bolas de neve uns aos outros, porque nos faltava a matéria-prima. Tão iguais ao que fomos, apesar dos cabelos brancos! Os verdadeiros amigos têm, afinal, sempre, a idade com que os conhecemos. E, para nós, nunca morrem. in "Lembranças e afectos - A Amizade também é memória" , coordenação de Ana Costa Lopes e Roberto Carneiro, CEP-CEP. Universidade Católica Portuguesa, Lisboa 2016 A A Maria Manuela Aguiar

Sem comentários:

Enviar um comentário