terça-feira, 10 de janeiro de 2017

MÁRIO SOARES UM DEMOCRATA PRATICANTE

Se tivesse de definir Mário Soares em duas palavras, diria, simplesmente, UM DEMOCRATA PRATICANTE. Não se limitava a acreditar no conceito teórico, deu abundantes provas que estava disposto a todos os sacrifícios da sua vida pessoal para a alcançar no seu país enclausurado na ditadura. E gostava, realmente de a viver com os outros, no quotidiano, em gestos concretos, num diálogo sempre aberto ao contraditório, aceitando as diferenças com uma absoluta naturalidade. Era socialista, mas considerava essencial a coexistência de outras correntes, à direita e à esquerda. Era laico, mas promovia o diálogo com as diversas religiões. Era republicano, mas mantinha relações de amizade com muitos dos Reis da Europa e o respeito pela tradição histórica da nossa própria Família real (os títulos nobiliárquicos foram abolidos pela 1ª República, mas eu sempre ouvi o Presidente Soares dar publicamente o tratamento de "Alteza Real" ao Duque de Bragança, Dom Duarte Pio, e recordo que fez questão de marcar destacada presença no Mosteiro dos Jerónimos, no dia do seu casamento). Nada de sectarismo, de dogmatismo! Nada de roturas com adversários por divergências menores ou maiores! Coabitava bem, "très à l' aise" com os seus opositores - assim eles soubessem corresponder... Acho que não só tolerava como apreciava uma discussão acesa, mais ainda se revestida de sentido de humor. Um sinal de inteligência, que encontrei em outros políticos de primeiro plano - Mota Pinto, Sá Carneiro, Ramalho Eanes, Jorge Sampaio, pois a comentários heterodoxos, obtive boa recetividade. Todavia o Dr Soares, levava o caráter lúdico da convivialidade mais longe e num círculo de interlocutores mais vasto. Com tanta gente! Situei-me, felizmente, dentro desse círculo alargadíssimo e, para mim, conversar com Mário Soares, desde o primeiro encontro, na remota década de 70, até ao último, há poucos meses, foi sempre uma festa! Relembro três de muitos episódios antigos, dos fins da década de 80: 1 - Democrata e parlamentarista - ele que foi muito mais tempo ativista partidário, governante ou presidente da República do que deputado... Mas prezava a missão parlamentar, como cerne da democracia. Alguns dos episódios em que vi esse espírito bem vivo, aconteceram, precisamente, no Palácio de São Bento. Recordo, por exemplo, o que me disse no dia em que o presidente Joaquim Chissano discursou na sala do Senado. Eu estava sentada junto ao meu grande amigo José Gama, na 2ª ou 3ª fila, numa posição oblíqua em relação à Mesa da presidência, onde Soares e Chissano ladeavam o Presidente da Assembleia. Chissano falou muito bem. A certa altura comentei em voz baixa: "Belo discurso, num ambiente tão morno... Vamos puxar os aplausos"? O Zé Gama concordou com o plano. Muito atentos, no fim de uma bela frase, discretamente, bem sintonizados, aplaudíamos e contagiávamos todas as bancadas. Fizemos isso umas três vezes, acordámos aquela quieta massa humana, convencidos de que ninguém sabia de onde tinha partido a iniciativa. No fim. quando me cruzei com o Presidente Soares, ele disse-me: - "Muito bem! Pôs a sala a aplaudir nos momentos certos". E eu, completamente atónita: -" O Senhor Presidente viu que era eu? Não podia imaginar..." Resposta: - "Claro que sim! Eu sou um parlamentar!" Era, sim. E era, também, muito perspicaz e observador. Nunca o vi olhar especialmente para a bancada onde estávamos o Zé Gama e eu. 2 - A imagem do Parlamento nunca lhe era indiferente. No dia em que recebemos o Presidente da Índia, estava eu a fazer-lhe companhia no salão nobre ainda vazio, onde o visitante e todo o longo cortejo protocolar chegariam dentro de poucos minutos, e vi-o debruçado sobre a mesa, onde estavam expostos os presentes a oferecer durante a receção, pela anfitriã, a Assembleia (um embrulho em papel colorido, inequivocamente um livro), e pelo convidado (um vistoso elefante, cravejado de pedras semi-preciosas, ali, a descoberto). Voltou-se para mim e comentou: "Belo elefante! E, em troca, a Assembleia dá-lhe mais um daqueles livros vulgares...". Não estou a imaginar outro Presidente com um olhar tão curioso e tão preocupado com a desproporção das oferendas. Estava ele e estava eu, também. Por minha iniciativa não faria nada, porque o Presidente da Assembleia achava sempre intrusivas as minhas sugestões. Contudo, poder invocar a opinião do Dr Soares mudava as coisas. "Tem toda a razão, Sr Presidente. Vou ver se há solução". Em princípio, não haveria, era missão impossível, mas, pelo menos, serviria para evitar a repetição da "gaffe". O Chefe de Gabinete do Prof. Crespo estava ali perto. Chamei-o e disse-lhe: "O Doutor Soares acha que o livro que vamos dar é de menos". Ele ficou espantado, a assimilar o comentário por uns segundos, mas logo acenou com a cabeça, saiu, disparado, do salão e, quase ato contínuo, regressou, acompanhado de um funcionário, em uniforme de gala, que transportava um enorme jarrão da Vista Alegre. No minuto seguinte, entrou o cortejo presidencial. Um "timing" perfeito, como num filme de "suspense"... O Presidente da Índia, por sinal, viu, de imediato o jarrão, imponente, junto ao elefante, e disse (em inglês): "Que bonito! Estava salva a honra do convento... 3 - Outra conversa, no mesmo salão, no mesmo contexto, a espera de uma n um Chefe de Estado. Não recordo a data com precisão, sei que foi em 1989, durante o período da 2ª revisão constitucional. Poucos dias antes, tinha sido vencida uma proposta de alteração ao artº 15, que eu tinha encabeçado, para dar aos brasileiros em Portugal o mesmo estatuto de igualdade de direitos que a Constituição Brasileira de 1988 consagrava para os Portugueses, sob condição de reciprocidade. Uma verdadeira equiparação ao estatuto da nacionalidade, sem naturalização prévia, coisa única em direito internacional. Eu apresentara a proposta, redigida em conjunto com o Deputado Adriano Moreira, primeiro na Comissão de Negócios Estrangeiros, então presidida por Dias Loureiro, (onde foi aprovada unanimemente!), e, meses depois, no plenário, onde encontrou uma inexplicável, mas inultrapassável, oposição da direção dos dois maiores grupos parlamentares, PSD e PS... Embora votada pelo CDS, pelo PRD, pelo MDP/CDE e por muitos deputados de todos os partidos não obteve os 2/3 necessários. Mário Soares era um incondicional defensor da reciprocidade, que considerava de grande importância nas relações luso-brasileiras, como me disse nessa altura. As palavras do Presidente representavam uma espécie de vitória moral e eu, tomada de entusiasmo, manifestei um ruidoso e pouco protocolar contentamento, apertando efusivamente as mãos do Presidente. Ficou admirado. Esperançado, também: - Então, afinal, a emenda sempre foi aprovada? - Não, Senhor Presidente, não foi. Mas o seu apoio dá-me imensa alegria. (Foi assim que decorreu uma primeira "entente" sobre o assunto, que levaria 13 anos e 3 revisões constitucionais para resolver. E só acabou resolvida, favoravelmente, depois de uma intervenção contundente e decisiva do Doutor Soares, na revisão constitucional de 2011, feita a meu pedido - essa é outra história para tenho para contar

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