terça-feira, 17 de janeiro de 2017

UM FRENTE A FRENTE TEMPESTUOSO :SOARES-CCP FRANÇA 1- Como toda a gente, ouvia falar das cóleras súbitas e passageiras de Mário Soares (eu própria sou muito propensa ao mesmo tipo de explosão). Todavia, 7 anos depois de o conhecer pessoalmente , nunca assistira a nada que se pudesse qualificar nesse preciso comportamento e, nunca mais voltei a presenciar nada de semelhante nos 30 anos seguintes. Mas o que tive a sorte de testemunhar foi sensacional e fez manchetes em toda a espécie de "media". 2- CCP é a sigla de Conselho das Comunidades Portuguesas. O Conselho era um órgão consultivo do Governo, composto por representantes do movimento associativo e teve, desde o seu começo, em 1981, até ao seu silenciamento, a partir de 1988, e extinção, em 1990, uma vida bastante atribulada, devida, em linha reta, à politização dos conselheiros de França e, sobretudo de Paris. A instituição era de inspiração francesa, mas o modelo original (o Conséil Supérieur des Français de l' Etranger), não nos preparara para o potencial de conflitualidade de que o nosso se revelou capaz. De tal forma o confronto foi constante e radical, nesses anos longínquos, que só eu, a Secretária de Estado que o tinha lançado no mundo das instituições nacionais, consegui lidar com ele - um exercício de paciência, qualidade ou defeito que não é o meu forte. Em 1982/83, quando fui substituída por José Vitorino no 2º Governo de Balsemão, o plenário não foi sequer convocado - uma ilegalidade, em nome da paz e sossego do ilustre governante. Em 1987, quando saí de vez do Palácio das Necessidades, no 2ª Governo de Cavaco Silva, ainda se realizou o plenário, que, à cautela, deixei convocado e em ativa preparação. Mas a sessão plenária de 1987 decorreu num ambiente fúnebre de fim dos tempos, claramente definido no discurso do meu sucessor Correia de Jesus. O CCP ressuscitaria com José Lello, em 1996, mantendo a designação num novo formato. É agora eleito por sufrágio universal, por emigrantes (muito poucos...) e parece condenado ao "low-profile" em que, mais pacatamente, continua a sua marcha - infelizmente, para quem nele sempre pôs altas expetativas (o meu caso). Ainda por cima surgiu, há alguns anos, um auto-designado "Conselho da Diáspora", composto, fundamentalmente, por empresário e banqueiros, que ocupa o palco mediático que falta ao CCP. 3 - Este preâmbulo é necessário para se compreender o espírito que animava os delegados do CCP- França na audiência concedida pelo Primeiro- Ministro Soares. (eram quase todos comunista, de várias facções, não sendo os do PCP necessariamente os mais agressivos...). As audiências eram simples pretexto para uma conferência de imprensa e funcionavam como altifalantes num comício permanente. Quanto mais elevado o "ranking" do interlocutor, mais amplificação garantia ao confronto. Por isso pediam encontros ao PR, ao PM, ao MNE, a que estes, regra geral, se escusavam, Viam-se, pois, na necessidade de dialogar com a Secretária de Estado que, por dever de ofício, nunca se negava a essa espécie de ritual. Dessa vez, nem o MNE Jaime Gama nem o PR Eanes lhes abriram a porta, mas alguém convenceu o PM de que eles iriam ao Palácio de Belém no dia seguinte (de facto, nem sequer sei se estava pedida a audiência ao PR - acreditava que sim, mas não acreditava que fosse concedida, porque se tratava de um pequeno grupo, não do órgão em si). Vozes mais influentes do que a minha tentaram dissuadir o Dr Soares da sua posição, mas ele não recuou. 4 - O encontro, para o qual fui, naturalmente, convocada, teve lugar na Gomes Teixeira. Assisti, sentada num dos sofás, à direita do PM. O desastre anunciava-se desde a primeira fração de minuto, a hostilidade respirava-se no ar, marcava os semblantes fechados dos conselheiros. O Dr Soares, que tinha examinado o CV resumido de cada um dos interlocutores começou, com o seu proverbial à vontade por interpelar o padre operário, que dava nas vistas, com uma berrante camisola vermelha: "O senhor é que é o padre?" Ele respondeu que sim, mas rindo abertamente, um pouco a despropósito (era um homem jovial, amplo de estatura, extrovertido, na hora de liderar o combate, que ia iniciar). O Dr Soares atalhou severamente: "Não é caso para rir! Tenho muito respeito pelos padres". Senti que a tensão subia... Seguidamente, o Abílio Laceiras tomou a palavra. Sempre gostei do Abílio e continuo a gostar, mas é tudo menos um diplomata e, ali, não sei porquê, atrapalhou-se na exposição e, por fim, como Mário Soares o olhava, dubitativamente, resolveu explicar que se exprimia assim, porque era um homem do interior da Beira. O Dr Soares ripostou logo: "Uma coisa não tem nada a ver com a outra. Salazar também era um homem da Beira e tinha um discurso muito articulado". Dito certeiro que baixou a temperatura - para glacial - generalizando a discussão, um coro autêntico coro de protestos. O PM dispôs-se a repor a ordem, à maneira de um moderador de debate: "Fala aquele senhor e os outros falam depois". Foi o pandemónio! Saltaram das cadeiras, todos ao mesmo tempo, como numa coreografoa bem ensaiada, gritando que se iam embora porque o PM os tinha insultado, mandando-os calar. O Dr Soares. enquanto eles saíam, (pouco menos que em passo de corrida, atropelando-se uns aos outros), gritava também: " Isto é uma grande golpada ! Foi para isto que aqui quiseram vir... estava tudo combinado, é tudo encenação!". Claro que era. Dali, os "enragés" foram diretos para a programada conferência de imprensa, onde contaram verdades a par de "pós verdades"... .Umas das quais foi a mentira absurda, mas eficaz, de que o PM os tinha acolhido mal, com os pés em cima da mesa. Foi essa a principal notícia da imbróglio, uma notícia não só ridícula como completamente falsa. A verdade é que, muito ao seu jeito, o Dr Soares não ficou hirto e colado às costas da poltrona, deixou-se escorregar, lenta, lentamente, e os pés foram ficando um pouco mais perto do tampo da mesa, mas por baixo, não por cima. 5 - Eu, que estivera calada durante as hostilidades - só teria falado se o Primeiro ministro me desse a palavra, como é óbvio - participei, comedida embora, na segunda parte deste episódio, que foi tão intensa, ou mais, do que a primeira. O Dr. Soares estava irritadíssimo! Ao seu chamamento acorreram vários assessores do gabinete, entre eles o da imprensa, que foi encarregado de redigir um comunicado, denunciando a premeditação de toda aquela trama. Contundente e imediato!. Ninguém achava que isso fosse a melhor ideia, havia que não valorizar a importância das pessoas envolvidas e dos factos passados, dar-lhe apenas a que tinham. Enquanto durou o estado de exaltação, o Primeiro-ministro não cedeu à nossa argumentação e o assessor, muito contrariado, preparava-se para compor o texto, Foram uns dez minutos altamente emotivos e, de súbito, com o simples correr do tempo, mudou de humor e concordou connosco. Eram assim, as suas cóleras, fortes e passageiras, como chuvadas tropicais (subjetivamente a comparação faz sentido - eu ia, então, muito a África e ouvia falar desse fenómeno, que despertava a minha curiosidade, e nunca se materializava, durante as minhas estadas, até que aconteceu, no Zaire, e só por milagre o Mercedes da embaixada "navegou" por uma estrada feita rio, a caminho do aeroporto - uma coisa absolutamente excessiva e grandiosa! Já com o Dr Soares muito bem disposto, aproveitei para me vitimizar - aliás, sem cair em exagero - dizendo mais ou menos isto: - Senhor Primeiro Ministro, teve aqui uma pequena mostra do que eu aturo constantemente. Comigo são horas de discussão, tensas, repetitivas, infindáveis. E, depois, disparam os ataques descabelados na comunicação social... É o meu dia a dia. Não com todo o Conselho, há uma maioria construtiva, com quem se pode trabalhar, sem politiquices . Mas este grupo é sempre assim! A resposta veio pronta: " Nem mais um escudo para esta gente vir passear e provocar desacatos!". A ordem tinha razão de ser, era justíssima, mas não completamente exequível, porque não podia prejudicar o todo pela parte... Continuaram a ser pagos, como os outros. Os outros para cooperar, sempre e bem, nos objetivos do CCP, estes, às vezes também, apesar das "bagarres"...

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